Há dias que nos ficam na memória e, mudando só o ano, virados do avesso.
Lá em casa o dia 3 de Fevereiro era o dia do Pai – o seu dia de anos. Não se fazia festa especial. Havia uns telefonemas, apareciam uns tios que viviam por perto no fim de jantar para um cálice vinho do porto e uma fatia de bolo. Mas quando o Pai ia fazer 70 anos, em 1972, obrigando-o a reformar-se andava triste. Decidimos fazer-lhe uma festa surpresa: as minhas irmãs viriam de Lisboa com maridos e filhos (uma epopeia sem autoestradas nem telemóveis!) os irmãos e cunhados apareceriam pela hora do jantar para se cantarem os parabéns. Eu teria de preparar tudo sem que o Pai se apercebesse. A Mãe também sabia e lembrava uma coisa ou outra, mas algo frágil pois tinha sequelas de um grave AVC que tinha sofrido em finais de 70 (do qual recuperou com uma extraordinária força de vontade e que lhe permitiu voltar a sair à rua e cuidar-se sozinha). Eu tinha tido o primeiro filho em Dezembro de 71, o marido esperava a “chamada para a tropa” para o mês de Março, entretanto fazia uns biscates aqui e ali, nesse dia fazia urgência no hospital de Barcelos. Não recordo bem como o dia começou, penso que levei a Mãe ao cabeleireiro de manhã, dias antes teria – feito as compras para um jantar maior e melhorado combinado com a empregada dos meus pais – falado aos tios para a surpresa de aparecerem depois do jantar para cantar os parabéns – as manas trariam o bolo de anos de Lisboa, acho eu, e dos preparos pouco mais lembro. Só me lembro que às tantas rebentou uma enorme tempestade, vento forte, chuva torrencial, um telefonema do marido, de Barcelos, de que lhe tinha entrado um homem morto pela queda de uma árvore e vários feridos sem gravidade. Não sabia quando poderia regressar. Comecei a temer pela viagem das minhas irmãs. Estava irrequieta o meu pai apercebeu-se e disse-me até parece que é a primeira tempestade que passas, sossega que já passa. Ficamos sem eletricidade o que era comum quando havia tempestade. Previ que seria por mais tempo que de costume. Na cozinha não havia crise que o fogão era a lenha. Fui à mercearia/tasca mesmo ao lado da casa comprar mais velas e petróleo para os vários candeeiros que a Mãe tinha trazido da casa da aldeia e reuni tudo o que encontrei para servir de castiçal. Os compartimentos essenciais ficaram iluminados. Não sei por quem ou como os tios todos mandaram-me recado que trariam castiçais e candeeiros e que viriam de qualquer maneira. Não me recordo da chegada das manas sãs e salvas, mas recordo bem a chegada dos tios, a maioria a pé com castiçais e candeeiros a petróleo e a alegria e risota que foi para o meu Pai ver-se rodeado por todos os seus e tanta luz que afinal se conseguiu. Foi o último 3 de Fevereiro festejado e muito bem festejado! Não me lembro rigorosamente de mais nada deste dia, presumo que quando cheguei a casa devo ter dado mais uma mamada ao filhote e caído na cama exausta!
Mas foi bonita a festa, Pai!
Em 1975 o avesso
Neste dia há 48 anos a Mãe C. deixou-nos. Era uma Mulher bonita, alegre, elegante, alta, inteligente, mas mais importante que tudo com uma mente sã (palavra cada vez menos usada) e um coração enorme. A sua vida foi dedicada aos três filhos e marido. Fazia e sabia de tudo um pouco, no dia a dia doméstico: costurava (na máquina da sua mãe), cozinhava, limpava, arranjava candeeiros ou o que preciso fosse, recuperava móveis velhos além das roupas, tudo era aproveitado. Suspeito que os homens da casa pouco a ajudassem nessas lides. Quero acreditar que os últimos anos da sua vida terão sido felizes: viu dois filhos casados, conheceu duas netas e um neto e passou a viver sempre disponível para ficar com netos, ajudar as noras. Uma vez disse-me: “Oh o que tenho aprendido com as minhas noras!” Eram os anos 70…não viveu o suficiente para eu aprender com ela o tanto que ela sabia. Muito pouco convivi com ela pois a guerra colonial separou-nos. Regressei em Setembro de 74 e o seu filho mais novo (meu marido) em Dezembro de 74. Logo em Outubro 74 somos confrontados com a doença que a levaria. A partir do momento em que foi internada no hospital cuidei-a o melhor que sabia e podia, permanecendo com ela o máximo de tempo que me era possível*. Foi a altura em que mais e melhor nos conhecemos, contou muita coisa, eu contava outras, dos progressos do neto, levava fotografias, notícias do filho que estaria a chegar de vez, levei o neto a visitá-la, não muitas vezes pois, embora ela irradiasse alegria por o ver, ficava muito cansada com o esforço para se mostrar alegre (preparava-se, punha rouge) – depois uma emoção profunda que nos fazia chorar e paradoxalmente riamos a seguir e buscávamos memórias boas. Conheci e amei então a Mãe C. num misto de tristeza, alegria e profunda emoção. E deixou-me (já dita ao meu ouvido) uma mensagem muito bonita transmitida pelo marido, cumprindo o que ela tinha pedido, em reunião de família. Felizmente a sua neta mais velha herdou-lhe não só o nome também a beleza e inteligência, o coração doce e a mente sã e forte frente às dificuldades inevitáveis que enfrenta. Força querida C embora não sejas tão alta como a Avó C herdaste-lhe a força com que, também ela, tantas outras dificuldades também passou – e nós aqui perto, sempre!
*[Preciosa a ajuda, única que então tive, das queridas: tia V. e M.A. a quem deixava o meu ensonado filhote (quase 3 anos).]
Estes tempos são o tal “buraco negro” a que por vezes me refiro e de que tenho somente uns lampejos – flashbacks diz-se agora – tanta coisa aconteceu em catadupa nessa década de 70!